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  • Dr. Antonio Baptista Gonçalves

Gravidez resultante de estupro infantil: moral x legal

Antonio Baptista Gonçalves*

17 de agosto de 2020 | 16h15




Antonio Baptista Gonçalves. FOTO: DIVULGAÇÃO


Repercute a notícia de uma criança de dez anos que está grávida em decorrência de estupros reiterados do tio desde quando tinha seis anos. Somente foi descoberta a gestação, porque a menina passou mal e foi atendida no hospital. O reflexo midiático pairou, não na atitude atroz do parente próximo, mas sim, na consequência do fato, isto é, mesmo a

legislação penal autorizando o aborto em casos de estupro houve uma cisão entre os

conservadores, que renegam essa possibilidade do ponto de vista moral, contra aqueles que defendem a aplicação da lei. Antes de qualquer juízo de valor apresentamos dados sobre o

tema.


O estupro é um ato que produz danos imensuráveis para a vítima que podem perdurar temporariamente ou indefinidamente, agora, imagine o estupro infantil? Segundo o

Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 houve 66.041 registros de violência sexual com 180 estupros por dia. 53,8% das vítimas tinham até 13 anos, 4 meninas de até 13 anos estupradas por hora, com 42% de recorrências. O número impressiona, assusta e enseja

reflexões.


A primeira delas é: Qual será a realidade concreta sobre crianças estupradas? Afinal, no



Brasil existem estudos que indicam que somente 10% dos casos são efetivamente

denunciados, portanto, a subnotificação impede de se saber com exatidão a extensão do problema. Todavia, o que causa repulsa é o ato em si, a perversidade em se aproveitar da inocência de crianças para satisfazer sua lascívia.


Esses números são anteriores à pandemia da covid-19 em que, por conta do isolamento social, as pessoas ficam mais tempo recolhidas em suas casas, as crianças deixaram de ir para a escola e o tempo de convivência entre vítima e o estuprador é maior, por

conseguinte, os números de violência sexual aumentaram consideravelmente. De acordo

com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos em 73% dos casos o abuso sexual ocorre na casa da própria vítima, ou do suspeito, e é cometido por pai ou padrasto em 40% das denúncias.


Por conta da proximidade é comum que as vítimas se calem, seja por conta de ameaças, jogos mentais ou por chantagens emocionais se aproveitando da ingenuidade das crianças, como por exemplo o estuprador inventar uma “brincadeira” que não podia contar nada do que acontecia entre eles para ninguém senão perdia o jogo, dentre outras artimanhas atrozes e vis, seja porque a própria família prefere preservar o abusador e a própria

reputação, em detrimento à segurança da vítima. Apesar da ocorrência ser maior entre meninas (82%), os meninos também sofrem abusos (a idade de 7 anos é que tem maior

incidência). Para 76% das vítimas há algum tipo de vínculo com o abusador, o que facilita a reincidência.


O Ministério da Saúde informa (dados de 2018) que a cada dez crianças atendidas no

serviço de saúde, após sofrerem algum tipo de violência sexual, quatro já tinham sofrido esse tipo de agressão anteriormente. Os números pioram, pois, dentre as ocorrências 18% das notificações são contra crianças de até 5 anos e 22% para crianças entre 6 a 11 anos.


Os riscos de danos para essas crianças são elevados, seja física, emocional ou psicologicamente. O Ministério da Saúde apurou que entre 2011 e 2016 o Brasil registrou mais de 32 mil casos de estupro de meninas entre 10 e 14 anos, sendo que 1.875 delas

resultaram grávidas de seus abusadores. O fruto da dor. Aqui a questão da subnotificação

se revela, já que no país nascem anualmente 25 mil bebês de menores de 15 anos, e como os casos intrafamiliares são pouco denunciados é difícil precisar a realidade efetiva dos números. Uma menina que seu corpo ainda está em formação, não está pronto para o sexo, quiçá para uma gravidez, as lesões produzidas poderão impedir uma nova gestação, a

colocar em risco de vida ou comprometer sua saúde, parte de seus órgãos e os danos, potencialmente variados, além de inviabilizar uma vida emocional normal.


Sobre a gravidez derivada de estupro infantil (toda relação sexual com menor de 14 anos é considerada estupro pela legislação brasileira), sem adentrar nos traumas e nos problemas emocionais e/ou psicológicos por ele produzidos, falemos do fruto da dor com uma árdua



missão de pontuar as opções difíceis de mensurar e, até mesmo optar, dentro do seio familiar, com duas consequências: uma moral e uma legal.


O Código penal brasileiro permite em seu artigo 128, II a interrupção da gravidez em decorrência de estupro. Portanto, a vítima não é obrigada a carregar em seu ventre a

memória personificada de sua violência. E o inciso I autoriza a interrupção se houver risco para a vida da gestante. Porém, não são todas as famílias que enxergam a gravidez derivada de estupro como passível de aborto pelo Estado. Seja por convicções ideológicas ou

religiosas, apresentam uma resistência moral em realizar o procedimento.


Importante notar que a lei possibilita a realização do aborto, porém, este é uma deliberação que depende do consentimento da gestante, e se trata de uma faculdade e não de uma obrigatoriedade. Nesse caso, o impacto moral pode produzir alguns efeitos: por conta do

receio com o estigma social, a vergonha e a exposição do delito, ainda mais, se o abusador for da família (pai ou o padrasto), algumas famílias optam pela realização de procedimento de maneira clandestina, agravando ainda mais os riscos para a criança gestante. Ou, até mesmo, optam em não interromper a gravidez.


O que causa espécie não é a indefinição sobre ter ou não o fruto da dor, mas sim, de se buscar meios de proteger o abusador e não expor os fatos por questões morais ou por

vergonha de uma reprovação de seus pares ou da sociedade, quando em verdade, deveria fazer cumprir a lei: denunciar e expor os estupradores às consequências de seus crimes. Por que as crianças têm seus dados mostrados e sua vida colocada à censura popular com ideias machistas inaceitáveis como: Será que ela se insinuou? Será que usou uma roupa sensual?

Por que nunca denunciou? Em tentativas débeis de minorar o ato produzido e aplacar a responsabilização do parente. Ademais, por que aquele que causa a dor não é exposto na mesma proporção?


Esse dilema moral x legal produz o incremento dos estupros infantis, afinal, quando não se escolhe proteger as crianças, elas ficam ainda mais desnudadas frente aos abusos familiares, desacreditadas, inseguras e o reais monstros ficam protegidos sob o véu da moral e dos bons costumes com o adágio popular “o que acontece em casa fica em casa”.

Não é o caminho, que sejam denunciados, independente do parentesco, que se saiba que sua conduta moral é inadequada, reprovável e que se cumpra a lei para responsabilizar com o peso do ordenamento penal aqueles que não respeitam a pureza de uma criança.


*Antonio Baptista Gonçalves é advogado, pós-doutor, doutor e mestre pela PUC/SP, presidente da Comissão de Criminologia e Vitimologia da OABSP – subseção do Butantã


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