20 de novembro de 2020, Dia da Consciência Negra no Brasil. A data faz
referência à morte de Zumbi, o último líder do Quilombo dos Palmares – situado entre
os estados de Alagoas e Pernambuco –, o maior dos quilombos do período colonial e
um símbolo de resistência contra a opressão portuguesa e à escravidão. Zumbi lutou
pela liberdade de culto, religião e prática da cultura africana no Brasil colonial.
De lá para cá, a Lei n° 3.353, de 13 de maio de 1888 conhecida como Lei Áurea
e assinada pela princesa Isabel aboliu a escravidão no Brasil. Todavia, o preconceito, a
discriminação e, principalmente, o racismo perduram ao longo do tempo. E, às vésperas
de se comemorar o dia 20 de novembro, o Brasil convive e se depara com mais um
episódio atroz de racismo e violência contra um negro.
João Alberto Silveira Freitas foi espancado e morto por dois homens brancos no
supermercado Carrefour em Porto Alegre. Um era segurança e o outro policial militar
temporário. João foi imobilizado com o joelho de um deles em suas costas e morreu por
asfixia, após ser agredido e ter dificuldades de respirar por mais de 5 minutos. Os
agressores foram cercados por oito seguranças que impediram a aproximação de quem
tentasse conter as agressões. Segundo uma testemunha, apesar dos gritos de que a
vítima estava morrendo, a violência somente cessou quando o mesmo parou de respirar.
Impossível dissociar o episódio com o que ocorreu com George Floyd nos
Estados Unidos da América há poucos meses, igualmente um negro que foi imobilizado
por um policial branco e, mesmo após ter dito que não conseguia respirar, por estar com
o joelho da autoridade em seu pescoço, por mais de 8 minutos, nada foi feito pelos
demais policiais que estavam no entorno e igualmente George veio a óbito por asfixia.
A rede de supermercados prontamente divulgou uma nota dizendo que rompera
o contrato com a empresa de segurança e que não pactuava com atos racistas. E, ainda,
com o aumento das reclamações decidiu por doar a receita de seu faturamento da sexta-
feira para o combate ao racismo. Uma tentativa prática inócua de se desvencilhar com o
ocorrido. A mesma rede que em outros tempos esteve envolvida com maus tratos a
animais.
No dia seguinte, portanto, Dia da Consciência Negra, o vice-presidente Hamilton
Mourão classificou como lamentável a morte de João Alberto, porém, disse não ver
racismo no caso por não haver racismo no país: “Não. Para mim, no Brasil não existe
racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil, não existe aqui”.
No dia 21 de novembro, o presidente Jair Bolsonaro publica em seu Twitter:
“Como homem e como Presidente, sou daltônico: todos têm a mesma cor. Não existe
uma cor de pele melhor do que as outras”. E, no mesmo dia, no discurso na cúpula do
G20 afirma: “O Brasil é um país miscigenado e foi a essência desse povo que
conquistou o mundo. Contudo, há quem queira destruí-la, e colocar em seu lugar o
conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças, sempre mascarados de luta por
igualdade ou justiça social. Tudo em busca de poder”. E finaliza com a pérola: “Não
adianta dividir o sofrimento do povo brasileiro em grupos. Problemas como o da
violência são vivenciados por todos, de todas as formas”.
Então, segundo as duas maiores autoridades do Brasil, não há racismo no país e
sim problemas que acometem a todos de maneira indistinta. Será? Vamos refletir a
partir da apresentação de alguns números.
Segundo o DataSus, as mortes de negros decorrentes de violência física
aumentaram 58,9% nos últimos 8 anos, uma morte a cada 7 horas. Se comparado à
população branca (1,3%), o índice é 45 vezes maior. O número de vítimas negras
aumentou de 694 em 2011 para 1.104 em 2018.
De acordo com o Atlas da Violência 2020, 75% das vítimas de homicídio são
negras. Em um comparativo, de 2008 a 2018, as taxas de homicídio aumentaram em
11,5% para negros, enquanto que para brancos houve uma redução de 12,9%.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, através do
Pnad, os pretos (negros e pardos) têm mais dificuldade de acesso à moradia e 7 a cada
10 pessoas que moram em casas com inadequação são pretos. Segundo a PUC/RS, os
negros recebem, em média, 17% menos do que trabalhadores brancos, mesmo tendo a
origem social idêntica. Por fim, ainda segundo o IBGE, em 2019, a diferença de
rendimentos entre trabalhadores brancos e pretos aumentou, isto é, a renda média
mensal dos pretos equivalia a 55,8% da renda dos brancos.
Diante dos números, não há como concordar que o racismo no Brasil não existe.
Há uma clara diferenciação social entre as raças. E o que o Brasil e suas autoridades
fazem? Negam e fingem que nada existe na prática, mesmo diante dos fatos, usam de
argumentos falaciosos e inverídicos para justificar suas falas, tanto no plano nacional
quanto internacional. Um duplo equívoco lamentável.
Através de um comunicado, a Organização das Nações Unidas, ao contrário das
autoridades brasileiras, destacou a necessidade de debate sobre o racismo no Brasil: “A
violenta morte de João, às vésperas da data em que se comemora o Dia da Consciência
Negra no Brasil, é um ato que evidencia as diversas dimensões do racismo e as
desigualdades encontradas na estrutura social brasileira. Milhões de negras e negros
continuam a ser vítimas de racismo, discriminação racial e intolerância, incluindo as
suas formas mais cruéis e violentas”.
Se a cada 100 homicídios no país 75 são contra negros e 2 a cada 3 presos são
negros, claro está que o Brasil não tem cuidado nem da desigualdade social e,
tampouco, dos problemas envolvendo o racismo. O que o presidente e o vice fizeram foi
uma tentativa estéril de mascarar as tensões sociais e raciais vividas cotidianamente no
Brasil. Quando, em verdade, o racismo, o preconceito e a discriminação estão presentes
no dia a dia das pessoas de uma maneira natural, como se, de fato, não houvesse
racismo, mas sim, uma herança cultural nacional.
Há não muito tempo atrás os negros tinham espaço nas novelas em papéis de
menor importância ou reconhecimento como motoristas, empregados e derivados. A
atriz Taís Araújo rompeu esse paradigma a ser a primeira protagonista negra do Brasil,
porém, qual foi o seu papel? Uma escrava na novela Xica da Silva. E de lá para cá o
racismo acabou? Longe disso, quantos autores negros são lançados anualmente pelas
editoras em um comparativo com os autores brancos? O mesmo vale para a indústria da
música, da moda e das artes em geral. Fora isso, a violência continua irraigada na
sociedade, em especial, nas regiões periféricas dos grandes centros urbanos, locais em
que a letalidade policial é elevada, principalmente, contra os negros.
As iniciativas de mudança são tímidas e não muito claras quanto ao seu alcance
ou pretensão. O governo fez sua maior medida contra o racismo instituindo as cotas
raciais, houve solução para a produção de novos líderes negros ou a ascensão de negros
na cadeia de comando das empresas relevantes no cenário nacional? A resposta segue
negativa.
Mesmo no setor privado não houve avanços para a mitigação do racismo e da
segregação racial. Como por exemplo, recentemente, quando uma grande empresa
lançou um programa de trainee exclusivo para negros no qual houve uma repercussão
negativa e o mesmo foi vetado pela justiça. Afinal, se tratava de uma iniciativa louvável
ou um plano de marketing? Será que o caminho seria o mesmo se o programa fosse para
cargos de comando?
Para se modificar o status atual do racismo é necessário se colocar negros em
posições de comando como diretores de tv, executivos de editoras e gravadoras,
diretores de empresas, dentre outros. O que não se pode confundir é a necessidade ou a
defesa de cotas para tais cargos, mas sim, a permissibilidade de que os negros possam
legitimamente participar dos processos seletivos sem nenhum tipo de preconceito e sim
apenas e tão somente com a análise de seu desempenho e potencialidades de liderança
para as funções. Que a segregação, o preconceito e a descriminação fiquem para trás
para que os negros não mais sejam vetados após as entrevistas por sua cor de pele.
O que precisa ser feito é um trabalho profundo de conscientização, o racismo
machuca, causa dor física, emocional e psicológica. É preciso acabar com as diferenças
raciais. Não há, realmente, uma diferença de cores entre as pessoas, somos seres
humanos e todos merecemos respeito, portanto, que sejam dadas oportunidades no
mesmo quinhão e proporção independente da cor de pele. O futuro do Brasil agradece.
Antonio Baptista Gonçalves é Advogado, Pós-Doutor, Doutor e Mestre pela
PUC/SP e Presidente da Comissão de Criminologia e Vitimologia da OAB/SP –
subseção de Butantã.
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